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O estrago que o incêndio causou na Ocupação Vila Paula

Alunos e docentes da FCM desenvolvem projeto de extensão na ocupação



| Texto: Rubens Bedrikow | Fotos: José Irani

 

Por volta das três horas da manhã da segunda-feira, os moradores da ocupação foram surpreendidos por um incêndio voraz e devastador. Em pouco tempo uma área grande virou cinzas. Só não foi pior por causa da intervenção dos bombeiros. Tão logo amanheceu e as notícias começaram a chegar. Primeiro mensagens de pessoas de lá. Em seguida, notícias na imprensa. O vínculo que temos com os moradores da Vila Paula vem do programa de extensão universitária que ali desenvolvemos há quase três anos. Fomos para lá.

Mesmo antes de estacionar tive que encostar o carro para Paula, estudante da Unicamp, descer e substituir um dos líderes da comunidade no cuidado com as crianças. O colo e os braços da tia Paula já são bem familiares para esses miudinhos que nesse dia estavam agitados e mais carentes que o habitual. Esses encontros sempre renderam depoimentos e relatos espontâneos. Pouco depois outros alunos chegaram. Ao redor de Felipe estavam seis meninos e uma menina interessados no que ele dizia. Uns sentados, outros em pé, um na bicicleta. Por um momento as bolas estavam na mão e não no chão, entretidas na conversa. De repente, as dobraduras de papel transformaram-se em aviões de diferentes cores que cruzavam o pátio da escola. Meninas preferiram os colos das alunas. Alguns destes tiveram que ser compartilhados por duas delas ao mesmo tempo.

Na hora do almoço, a menina com o braço quebrado me ofereceu um sorriso orgulhoso porque a aluna Camila lhe dava comida na boca. A notícia de que os alunos do Dr. Rubens estavam na escola circulou rapidamente pela Vila. Aos poucos foram chegando mais crianças, felizes de rever os tios e tias que, por causa da pandemia, há meses não apareciam. Hoje, estavam como voluntários, dando atenção e acolhendo as crianças que foram acordadas de madrugada, assistiram o fogo destruir barracos, adultos desesperados, num clima de muito medo, pânico e impotência. Nessa manhã, mães e pais não tinham como dar colo aos filhos. E foi isso que os tios e tias da Unicamp fizeram. Foi assim que ouviram das crianças que “pegou fogo na favela, tia!”.

 

Camila, aluna do curso de Medicina da Unicamp

 

Onde antes existiam casas restavam agora apenas escombros, telhados de metal retorcidos, geladeiras queimadas e muita coisa escura irreconhecível. Colchões, roupas, sapatos, camas, mesas, cadeiras, óculos, cadernos, canecas, toalhas, escovas de dente, documentos, telefones, bonecas, bolas, batons, travesseiros deram lugar a uma massa escura que ainda soltava fuligem pelo ar. A estrutura de metal de uma cama me atraiu a atenção. Uma mulher olhava na mesma direção. Eu perguntei se ela também perdera seu barraco e ela respondeu que aquela era sua cama. Nada mais se podia identificar ali no local de sua casa. Mostrava-se atônita diante de tamanha perda. Não somente as paredes e telhado desapareceram, mas também todos seus pertences, seu RG, seu telefone. Não tinha como provar sua identidade nem telefonar para os amigos cujos números de telefone se foram com a memória do celular. Na sua memória não estavam os números, mas sim o barulho, o clarão e o calor do incêndio. A noite seguinte seria silenciosa e triste numa escola fora do bairro, longe de sua comunidade. O corpo parecia inerte, os movimentos lentos, sem força sequer para fazer jorrar lágrimas. 

 

 

Os tratores chegaram para limpar tudo. Um homem alto, forte observava a máquina colocar abaixo o restante de sua casa, queimada parcialmente pela intervenção dos bombeiros, mas totalmente condenada. Cada pedaço de madeira, cada objeto que era retirado, uma dor. Estavam dilacerando seu lar. Aquela porta ele tinha colocado há uma semana. Como devia ser difícil segurar pra dentro as lágrimas! Elas provavelmente desceriam mais tarde, em espaço reservado. Naquele momento, era exigido valentia para amparar e dar esperança à esposa, às duas filhas e aos vizinhos.

Muitos destroços e muitas emoções. Um jovem morador relatou ao amigo que ficou sem nada. Tinha acabado de enterrar o cachorro. Acordou achando que eram tiros, mas era o barulho do fogo queimando madeira. Misturado estava o som do cão preso. Cada um tinha uma vivência singular que precisava ser compartilhada.

Vários moradores subiram no telhado de suas casas a fim de usar a água armazenada na caixa d’água para molhar seus próprios barracos e tentar atrasar a ação do fogo. Infelizmente, o telhado não suportou e uma jovem caiu de três metros de altura. Cerca de duas horas depois foi levada pela ambulância do SAMU ao pronto atendimento. Fez radiografias e recebeu remédio para dor. No meio da tarde estava de volta à ocupação. Não comprou o remédio receitado pelo médico porque não tinha dinheiro. Pedi que me mostrasse a receita. Levantou e andou com dificuldade. Tinha dor. Foi e voltou devagar. Bicerto 150 mg: é o cetoprofeno. Custa entre 30 e 40 reais a caixa. Me pergunto porque o médico do pronto atendimento não receitou ibuprofeno, antiinflamatório disponível na farmácia do centro de saúde. Questão ética importante. “Doutor, ele só me deu um dia de afastamento. Trabalho na limpeza. Acho que não vou conseguir trabalhar amanhã”. Claro que não. Lembrei do trabalho de iniciação científica da aluna Camila sobre o direito à saúde na Vila Paula. Eu acabara de ler o relatório final. Lá consta que os moradores entendem que direito à saúde vai além do simples acesso aos serviços; inclui o acesso a consultas de qualidade, humanizadas, empáticas, centradas na pessoa, no sujeito singular.

Uma mulher portadora de hipertensão e sua mãe portadora de diabetes estavam sem medicamentos. Não conseguiram pegar no centro de saúde porque não tinham cadastro. Para ter o direito a esse cadastro é preciso que os coordenadores da ocupação enviem uma carta confirmando que a pessoa realmente mora lá. Isso porque quem mora na ocupação não tem endereço. Como a carta ainda não havia sido encaminhada, as duas moradoras tiveram o acesso negado. Tiveram que procurar a unidade onde eram acompanhadas antes de se mudarem para a Vila Paula. Não adiantava explicar, protestar, gritar. Sabiam disso. E como tantos outros, baixaram a cabeça e se foram. Sem cadastro e sem medicamentos. Muitos moradores chegaram à ocupação durante os últimos meses em razão da pandemia e perda de emprego e as cartas com seus nomes ainda não chegaram à unidade de saúde. Por isso continuam sendo barrados.

 

Dr Rubens Bedrikow - Departamento de Saúde Coletiva FCM / Unicamp

 

A reconstrução não tardou a começar. Após a limpeza e delimitação dos “lotes" as obras começaram. A Prefeitura providenciou as madeiras para construção dos barracos. Uma funcionária da Assistência Social me disse que já ouvira falar do kit barraco, mas achou que não era verdade. Mas era.

Impossível não admirar os moradores que carregaram, cortaram, pregaram as madeiras durante os dias mais quentes do ano quando a temperatura em Campinas atingiu 38˚C, com sensação térmica de mais de 40˚C. Importante ficar atento ao calor no ambiente de trabalho, objeto de interesse dos médicos que se dedicam à Saúde do Trabalhador. Há risco de câimbras, exaustão térmica e insolação. Recomendamos pausas e ingestão de água fresca. Quem quiser saber mais pode consultar verbete escrito por Paulo Alves Maia no Dicionário de Saúde e Segurança do trabalhador organizado por René Mendes.

Uma gestante, mãe de uma linda criança de dois anos, casada, me perguntou se ela, marido, filha, bebê que vai chegar, irmão e sobrinha caberão no novo barraco, pois moravam juntos no que queimou. Infelizmente, não caberão. Eles terão que providenciar a ampliação do barraco. Quando o dinheiro der. Uma criança ouvia a nossa prosa e interviu: "por que eles não entregam a casa toda, tio?”.

As doações se amontoavam na escola. Os montes de roupas e sapatos revelavam a grandeza da solidariedade do povo campineiro frente às imagens e notícias. Foram chegando também colchões, armários, camas, aparelhos de televisão e alimentos. Foi grande a circulação de pessoas na escola. Gente que deu uma passadinha. Gente que não parou de organizar, separar, classificar as doações. Duas moradoras conversavam enquanto separavam as roupas doadas:

- Estou triste e feliz ao mesmo tempo!   

- Por que?

- Feliz porque não vai faltar roupas, sapatos, colchões, leite e outras coisas. Mas triste porque acho que a maioria não vai conseguir nem colocar o que vai receber nos seus barracos porque são pequenos. E vai ser difícil guardar até que um dia consigam construir mais um pouco.

 

Doações recebidas pela comunidade Vila Paula

 

Percebi que os barracos que brotavam dia a dia dariam teto aos desabrigados, mas também esconderiam o verdadeiro problema que é o direito negado a uma moradia melhor. Não é bom morar em barraco de madeira. Não é confortável. Não é seguro. Não é justo. O risco de incêndio continuará. Por enquanto continua valendo a proibição de construirem casas de alvenaria. Uma proibição irresponsável e que se tivesse sido suspensa há alguns anos, acompanhada da regularização do território, poderia ter evitado este quinto incêndio em cinco anos de existência da ocupação.

No sábado, improvisamos três consultórios no pátio da escola a fim de oferecer escuta às pessoas que estavam morando ali. Foi assim que ficamos sabendo que várias crianças permanecem assustadas passada uma semana do incêndio. Acordam à noite gritando, falando do fogo. Uma menina pequena tem pavor quando vê um adulto correndo, pois lembra da correria na noite do incêndio. Os adultos têm dificuldade para dormir. As imagens do incêndio, o barulho da madeira sendo queimada, os gritos dos moradores, o som dos caminhões de bombeiro retornam à noite. Uma jovem emocionada, com os olhos úmidos, relatou que sua mãe teve que derrubar a porta de seu barraco porque ela e o marido não acordaram sozinhos e o fogo já estava entrando. O coração disparou novamente, como no dia da tragédia. Outra mãe disse que não contou ao filho de cinco anos sobre a morte do cachorro. Preferiu dizer que deram o cachorro a uma menina que estava triste.

 

Atendimento na E. E. Maria de Lourdes Bordini, local de alojamento para moradores da Vila Paula

 

Muitas histórias recheadas de emoções. As perdas atuais se misturavam a outras perdas ocorridas durante a vida sofrida desses moradores. Histórias de perdas de afeto materno, presença paterna, filhos, trabalho, esperança. E agora o barraco.

Junto com o barraco se foram algumas lembranças, como a única foto que restava do pai. A mulher segurou ao máximo as lágrimas. Mas não suportou quando uma fumaça  grossa negra se elevou no céu. Várias pessoas saíam correndo ver se era novamente na Vila Paula. Não era, mas as emoções reapareceram, assim como as lágrimas.

Infelizmente as lágrimas não são suficiente para apagar o incêndio, nem o próximo.

É urgente que se regularize esse território ocupado há cinco anos, que se autorize a substituição dos barracos de madeira por moradias de alvenaria, que se providencie arruamento e endereço a esses cidadãos.

 

Doações:

As doações podem ser entregues na E. E. Maria de Lourdes Bordini

R. Elza Monnerat, 120 - CDHU - Vila San Martin, Campinas - SP, 13069-080, (19) 3281-6030

 

Contato para retirada de doações com José Irani (19) 99248-9106

 

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